I. Harmonias inconscientes:
Os cerca de trinta mil tatos das membranas basilares, estes osciladores de aproximadamente 35mm, respondem ao impacto de uma estreita banda freqüencial das ondas sonoras, e de acordo com sua posição em relação aos nervos auditórios vertem as freqüências e fases sonoras em impulsos elétricos. A quimera tácita demandaria a fixidez deste ínfimo movimento . Apesar do alcance de captação plena e constante da faixa vibrante entre +/-20 a 20,000Hz, trabalhamos com uma dilatação e retração do foco consciente auditivo muito variável, fora do qual ocorrem as micro e macro harmonias inconscientes.
Os ritmos elétricos dos neurotransmissores cerebrais, cocientes de todas as freqüências que cruzam o corpo, sintetizam-se entre +/-1 a 30Hz podendo ser descritos como o metainfrassom da mente. Os sentimentos, mapeamentos cerebrais do corpo em relações específicas, desvela à faculdade musical no seu sentimentalizar do som, estabelecimento de rotas dos ruídos do, e no, corpóreo .
Os organismos harmonizam suas orquestras homeostáticas através destes impulsos elétricos que variam sua sinfonia de acordo com as necessidades do corpo na sua incessante busca por equilíbrio e bem-estar. Seu funcionamento varia desde o mais lento possível como na faixa +/-(Delta ~ 1 a 4Hz) que possibilita o desprendimento egóico para as regulações do metabolismo, das respostas imunitárias e dos reflexos básicos realizadas somente no sono profundo (REM); passando às ondas +/-(Theta ~ 4 a 8Hz) que regularizam os comportamentos de dor e prazer e com isso os alicerces das emoções como nos estados de transe, anestesia e relaxamento; chegando à gama consciente +/-(Alpha ~ 8 a 12Hz) onde se recompõem os recursos minerais e se ampliam as sensibilidades nervosas e a velocidade de conexões sinápticas, e acelerando-a até o estado +/-(Beta ~ 16 a 24Hz) de alerta, concentração e aceleração do metabolismo através da queima adicional de adrenalina e proteínas .
Estes estados coexistem aparalelamente no organismo que as focaliza de acordo com suas necessidades moleculares, fuga da dor e busca do prazer, que alicerceiam a cristalização de certos hábitos na programação neurolinguística .
O planeta sobre o qual musicamos também ressoa em sua ionosfera durante seus movimentos de rotação e translação. As reverberações das suas instabilidades ondulares, reflexos das relações de forças entre toda a complexidade harmônica de sons nela presentes e os demais corpos celestes, variantes entre 8 a 45Hz . Terra e Humanos são organismos em uma relação que a harmonia clássica estabeleceria como dissonância dominante e trabalham, não coincidentemente, em grande parte na mesma faixa de freqüência.
A concha e o das dasein est rondo, o corpo é a casa é o mundo . Tudo se ativa quando se acumulam contradições, a ciranda do boi é o labirinto do minotauro. À jam se comunica como nos conscertos ante às partitas, às energias que reverberam as próprias estruturas de um corpoambiente. Fazer o magnetismo dos falantes e metais estruturais reencontrarem suas ancestralidades na terra, subjetivar os objetos. Todas as tecnologias não são mais que um mito , e nisto um libretto seria escrito ad infinitum .
O som de um ambiente reverberado nele mesmo nos joga no paralaxx, onde as infinitas particularidades dos corpos entre a certeza da morte e a impossibilidade do silêncio se interprenetam Liberando o ato na probabilidade, randomização e improviso com os elementos previamente ensaiados pelos performantes ao mesmo tempo que liberando o som do texto imanente pelo freqüencismo coloral, criando massas estocásticas, nuvens, galáxias, campos harmônicos afectivos de multipolaridades atonais, tonais e modais; desvirtuando o caráter absoluto das estruturas cromáticas transitando entre hiperserialismos e minimalismos frequenciais.
As posteriores concordâncias entre as diversas faculdades se relacionam com a harmonia entre os dados dos sentidos aí dispostas, e estas nunca eternas, abismam entre coerência e crença trazendo à tona a impossibilidade das esferas no fenômeno. A mente frente à beleza incompreensível de si mesma, feita círculo pluridimensional, torno de tornos da lama lógos, encontra o seu limite no saber-se impotente e pode então no des-esperar dançagir , manejar a rede de lemes de redes, cibernética.
II. Corprótesespaço, dança das esferas:
A presença em movimento do corpo parte das redes de interlocução possíveis entre espaço construído, público e objetos (aparatos e próteses). Não há a possibilidade de que a dança seja elaborada dissociadamente de toda a composição maquínica e das engrenagens potencializadoras das relações entre espaço e corpo em desdobramento.
Se direcionamos o corpo a uma dança esférica, isto consiste muito mais nos mecanismos de um enredamento noosférico do que nas imagens que giram em uma mimética do círculo . Hipnotizadores e hipnotizáveis através da constante ou fragmentada aparição da gira , os corpos experimentam um transtorno, mas mais do que isso, suas potências conströem a dança no encontro de um corpoespaço.
É nesse caminho que o pensamento corpo segue. Como fazer parte de um mesmo ambiente que outros corpos e no mesmo dissociar-se, desmembrar-se identificando-se da e na multidão ?
O bailarino desloca-se no espaço como portador do ambiente que o circunda. Desloca o som e é deslocado por ele, comportando no corpo a memória sonora impressa na subjetividade ao longo de sua história. As próteses falantes são esse mecanismo do corpo evidenciado, como uma literalização dos sentidos, um extrovertimento das memórias sensoriais.
A prótese se relaciona com o bailarino como o bailarino se relaciona com o ambiente, dança nele. O corpo, então, não é mais ele mesmo , não se resume ao visível e palpável, não se delimita mais no próprio contorno .
Em um mundo de exaltação e esgotamento informacional, os sentidos passam de instrumento de re-conhecimento do próprio corpo no ambiente a um mecanismo estanque de identificações pré-estabelecidas a estímulos absolutamente partiturizados. Deixamos morrer seu frescor de sensação primeira , desapropriamos por completo a possibilidade de sentir em sua totalidade. O corpo carrega os sentidos como apêndices de sua própria carne, amortece seus fluxos em uma tentativa de não mais responder aos estímulos de um ambiente exaurido.
Projeções do porvir, nossas idéias diante do perceptível não se configuram mais como arquiteturas ou estratégias nossas, mas como uma computação funcional constante do confluir com o mundo.
Se por um lado esse confluir libera o si como abertura de possibilidades em um ambiente de riqueza informacional, este pensar e agir de acordo com o rebanho, trama influências ao corpo, prendendo-o e isolando-o da possibilidade de criar suas próprias nomenclaturas, marginalizando seus desejos e emoções, coibindo sua interação sensitiva com o mundo. Nos prendemos crendo já saber a gama de possiblidades reativas possíveis dos sentidos, nomeamos antes de termos sentido. Carregamos no próprio corpo, próteses invisíveis, livros de receitas aos sentidos e às interações com o mundo.
Nos apropriamos do pensamento alheio, mimetizamos as ações que nos cruzam apenas sem nos (re)configurarmos a todo momento a partir do encontro com o outro.
Quando não roubamos mais nada do outro é porque aquilo que ele nos apresenta já é parte de nós mesmos, e a paleta interativa se mostra não mais que o senso-comum. Troca e relação cedem a economia e alienismo confluindo na inércia e amortecimento dos sentidos, a pseudointeração individualizante do virtual.
Ressaltar estes transtornos entre corpos físicos e abstratos que trespassam a subjetividade aproxima-nos do som (a sensibilidade da duração de que dispomos, além das memórias: imagens-tempos entrelaçadas a um espaço eterno subtraído pelo foco). Um corpo enquanto ambiente ou espaço de si mesmo reconfigura suas percepções no confluir com outros sistemas. Criando um terceiro corpo que não o próprio ou a prótese mas a imanência da relação, aprofundamo-nos na pausa para as percepções primeiras, um silenciar dos motores inertes e capturados nas reações pré-estabelecidas pelo aparelho habitualizante. Re-vestir o próprio corpo , reconhecer-se construído além do eu e observar o outro que imageticamente pode se deflagrar em uma mesma situação, mas que comporta em sua experiência o absurdo da identidade no encontro mediado pelo maquínico.
A relação meramente funcional entre homem e máquina levada a seu extremo, um corpo que aciona a prótese e é acionado por ela, exaure as possibilidades de interação corporal e torna-o capturável pelas regras que acompanham tais mecanismos, o kitsch .
III. Inconscientes harmônicos:
Os sons que nos precedem à existência e ainda estão por cessar são indissociáveis da nossa utopia sentimental do silêncio: são a substância, a emoção de fundo, de nossas arbitrariedades harmônicas.
Através da musicæ , tentativa de apaziguar o tormento deste ouvir transconsciente à demasiado complexa harmonia do mundo, reduz-se o foco auditivo a um espectro compreensível, e preferivelmente confortável, das faculdades neuropsicológicas do ouvintecompositor. Esta relação ambígua da estética enquanto a ordenação da complexidade , permite-nos tanto experimentar às transformações da audição orbitando ao ideal simétrico sob a gravidade sensível-racional do corpo quanto encurralar no ângulo fechado dos cantos entre melodia, cortimbre, ritmo e harmonia as infinitesimais arestas das freqüências de nossa esférica escuta .
Deixamos que esta segunda imagem de harmonia reverberasse em todas nossas relações com o musical dividindo os gestos de intuição-criação das de representação em palcos tridimensionais e interpretação padronizada de instrumentos padrão, para encaixar o movimento no espaço, partituramos. Por querermos controlar o belo e o sublime acabamos por destruí-los .
Sustentando este grande musical espetáculo da institucionalização da intuição, o som comprimido em três dimensões serve de massa para as arquiteturizações pseudobarrocas de escadarias ascé(p)ticas de compositores feitos ícones da seriedade sacra deste ofício. O músico reduzido a ator de música advoga seu conhecimento da lei de seu instrumento masturbador, e virtuose que é, com o que resta do lúdico dado ao erro, toreia o ruir sob o véu-técnica e este sistema especialista veste seu ídolo.
As disciplinas formais dos estilos, frente às quais se prostram estes tardios intérpretes copistas, mascaram na logomítica marcha storia-scientia suas para-doxas religiosas de retroalimentação entre o paraíso perdido da forma e a esperança no juízo final, confortando as estreitezas dimensionais de nosso espectro de sensibilidade na linearidade do progresso, para enfim, na nostalgia do presente fazer da própria existência ensaio de seu produto gregário, a obra . Reduzidas as músicas assim a A Música, objeto de consumação: repetição dos resultados certeiros em lugar dos processos de devaneio através das impossibilidades das certezas. Eficácia plena da gestão sócio-econômica do gozo fetichizado em um refinamento cultural . A música tal qual o corpo, porém, é algo para muito além do prazer .
O que toca o humano ao tempo segue em cânone contra as barreiras culturais que almejam ao estético estático. Entre ambos, fugas dos ouvires na contínua instabilidade do saber-poder, as ondas das modas entrelaçam as harmonias das eras. O estudo harmônico para chegar aos axiomas da mathesis isolava a música numa audição idealista. Relevando como ruído, a relação entre as incontáveis faculdades da ecologia cognitiva de um ouvintecompositor, e ainda o vão-elo entre diversas subjetividades, estes inconscientes harmônicos. As artes, estes organismos vivos evoluindo a uma velocidade estonteante entre nós, meros hospedeiros , seguem porém se destruindo e unindo mutuamente em busca de uma harmonia contemporânea .
A crítica à teoria das esferas através dos limites epistemológicos feita pelo sintetista logoi technai deixa saltar aos ouvidos o religare entre crença e ciência no tetratkys . Nossas concepções harmônicas surgem das consonâncias e dissonâncias para com os sons inconscientes, não o contrário, como se as estrelas seguissem o princípio da humana música. Esta assunção verídica, porém, é senão uma arma numa velada disputa entre dois métodos de cerceamento das possibilidades auditivas pelo controle na antropomorfose do sonoro. Qual prisão seria a mais adequada para a intuição musical, o número ou a palavra? O cantochão balbuciaria, os cantos gregorianos sussurrariam e a sinfonia em fortíssimo clarearia: ambos! O inegável triunfo da ópera e da canção estão intimamente ligados à necessidade desta criação de uma audição dócil , conforme com a lei dos números, desta agricultura dos nômades sons, literaturização do gado ouvinte humano . Neste sentido, o jazz foi de fato, como querem alguns , a continuação da música eruditista européia, nela somando através da imagética de emancipação não mais que o cálculo rítmico enquanto variável das sonatas modernistas.
O ideal da (de)composição moderna desemboca nas experiências limítrofes da dialestética sonora do século XX iniciando a transmediação do texto e seu contexto na formação de texturas . Que sons queremos que nos vistam? Como liberar as artes übermensch de nós? Passos primeiros duma nova estruturação das sempre crescentes dimensões da existência humana, este eterno retorno ao equilíbrio entre o caos do ouvir ao ruído-mundo e a necessidade da ordenação cristã dos rebanhos de mercados musicais, passam pela reinvenção do músico de papel enquanto xamã do ritual-jogo do ócio, imanência do maestro , carcereiro panóptico e metrônomo intensivo; em busca de um renascimento da música no espírito da filosofia trágica.
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